sábado, 7 de março de 2015

O amor-paixão em "Azul é a cor mais quente"


    O filme francês Azul é a cor mais quente (La vie d’Adèle/Blue is the warmest color, 2013) de Abdellatif Kechiche mostra o surgimento do amor-paixão na vida de duas pessoas. Em primeiro lugar, eu tenho que ressaltar aqui (e elogiar) a sensibilidade do diretor em trazer para as telas do cinema uma história inspirada em um HQ lançado na França em 2010 por Julie Maroh. Sabemos que muitos filmes são inspirados em livros e os que são inspirados HQ normalmente contam histórias de super-heróis. Mas esse não é caso do HQ que narra uma história comum de uma garota normal que vê sua vida transformada ao encontrar sua primeira paixão. Por isso mesmo, esse filme tem um grande potencial de identificação com os espectadores.
Para falar sobre o aspecto do filme que mais me impressionou, que foi a percepção do sentimento entre as duas personagens através do olhar, eu vou recorrer a um mito grego que narra o surgimento de uma paixão entre duas pessoas de uma maneira bem peculiar (Li esse mito pela primeira vez no capítulo 1 do livro Esferas I do filósofo alemão Peter Sloterdijk). No mito de Lísias e Fedro, Lísias está contemplando Fedro completamente fascinado pela beleza de seu rosto, enquanto este, por sua vez, fixa seus olhos aos olhos de Lísias. Neste momento, Fedro envia faíscas de luz para os olhos de Lísias junto com seu espírito vital. Em seguida, durante essa troca de olhar, o sangue de Fedro vira vapor e é transportado para dentro do coração de Lísias, onde se condensa, convertendo-se novamente em sangue. A partir de agora, Lísias possui o sangue de Fedro em seu coração. No mesmo instante em que isso acontece, os dois passam a se desejar intensamente, já que um faz parte materialmente do corpo do outro. Fedro, portanto, passa a seguir Lísias, pois seu coração chama o sangue de volta para o lugar de onde veio e Lísias não pode mais deixar Fedro, já que o sangue que está em seu coração quer voltar para a antiga morada. É assim que a atração intensa e inexplicável entre duas pessoas apaixonadas é apresentada no mito grego, pela transferência (encantada) do sangue de um amante para outro, onde o amor físico é um envenenamento material e um encantamento a distância.


    
O filme é dividido em duas partes; na primeira, ele irá mostrar os acontecimentos no dia-a-dia comum de uma adolescente até o tão esperado dia da chegada da sua primeira paixão. O encontro entre as duas personagens Adèle (Adèle Exarchopoulos) e Emma (Lèa Seydoux) ocorre de maneira inesperada; e é em questão de poucos segundos que esse sentimento surge através da troca mágica entre o olhar das duas meninas que se cruzam em um sinal no meio da rua. Aliás, quero comentar aqui que gosto, particularmente, da maneira como o diretor incorpora um toque de misticismo um pouco antes desse encontro entre as duas meninas, quando Adèle escuta uma música tocada por um artista de rua, criando uma espécie de presságio na personagem principal em relação a algo inexplicável que irá acontecer. Antes de dar continuidade ao texto, é recomendável que você, leitor, assista a essa cena do filme para sentir o que está sendo dito no mito acontecer com essas duas meninas:



     A partir desse encontro, acompanhamos a evolução do sentimento entre Adèle e Emma de maneira bem íntima por meio de troca de olhares, beijos, lambidas e carícias (em cenas bem quentes), para fazer justiça ao título do filme. Nós, os espectadores, somos expostos a todo o esplendor que a paixão traz para seus amantes. Acho que esse é o filme que conseguiu expor de maneira mais sentimental (e fidedigna) o que acontece com duas pessoas quando estão apaixonadas. Nós percebemos que Adèle e Emma conseguem se sentir, isto é, tanto Adèle quanto Emma sabem que sua amada compartilha o mesmo sentimento da paixão.


É claro que a partir dessa paixão se desenvolverá o amor entre as duas meninas. Nesse momento, entra em questão a maturidade de Adèle em viver essa nova fase de seu relacionamento com Emma. Devido aos acontecimentos que se sucedem na história, passamos a acompanhar uma nova fase dos sentimentos de Adèle quando ela perde o amor de Emma na segunda parte do filme. Conhecemos, então, o outro lado da paixão: o sofrimento, que é tão intenso quanto à beleza que ele traz para os amantes. Ao ver a protagonista se acostumar a conviver com essa dor em sua solidão, percebemos que sua paixão por Emma continua lá, viva. 
Chamo atenção agora para o final do filme, que não poderia ser melhor escolhido, pois ele termina de maneira indefinida em relação ao que acontecerá com o sentimento que Adèle ainda sente por Emma, ou melhor, que as duas ainda sentem uma pela outra. O filme deixa bem claro que essa paixão continua viva nas duas, apesar de Emma estar em um novo relacionamento, amando outra pessoa. Em relação a Adèle, o filme termina nos deixando um pouco angustiados por não saber o que irá acontecer em seu futuro, apenas temos a certeza de que a chegada e a perda dessa paixão transformou completamente a vida da nossa querida personagem. Podemos até chegar a dizer que a vida de Adèle se divide em antes e depois de Emma.


Para não terminar esse texto de maneira depressiva ou triste, já que é assim que nos sentimos quando acabamos de assistir a esse filme, eu deixo aqui registrada minha admiração às duas atrizes que interpretaram maravilhosamente bem essas duas personagens. Gostaria de lembrar que as duas são as únicas atrizes na França que levaram para casa o prêmio Palme d’Or/Palma de Ouro junto com o diretor do filme (normalmente apenas do diretor ganha esse prêmio). Após as gravações do filme, as duas se tornaram grandes amigas. Por hoje é só, e eu fico por aqui admirando essa duas belezas, rsrsrs...