Em 2002, o livro O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha foi considerado o melhor romance de todos os tempos. Antes disso, esse clássico já havia sido elogiado por diversos autores que também fazem parte do cânone da literatura universal como o escritor russo Fiódor Dostoiévski, que, certa vez, fez a seguinte declaração: "Jamais será encontrado um texto tão profundo e poderoso quanto este. A maior e definitiva expressão do gênio humano".
Na Teoria Literária, Dom Quixote é considerado o primeiro
romance moderno. O tema do romance de Cervantes é construído em torno do
fidalgo Alonso Quejada que, um dia, tem um disparate e se convence de
que ele faria renascer o exercício da cavalaria, que já havia
desaparecido há tempos. No romance moderno, a figura do narrador
representa um resíduo de oralidade das antigas formas narrativas e, nesse
espaço, insere-se o elemento da melancolia pelo narrador. Walter
Benjamin explora o romance de Cervantes por meio desta figura que irá falar de
suas frustrações, angústias, etc. Nesse gênero fundador da modernidade, há o
surgimento da consciência moderna que, para Walter Benjamin, está ligado à
inserção do impulso melancólico proveniente da perda de um objeto. O desejo da
literatura seria, portanto, resgatar esse objeto perdido, negando
qualquer separação passada.
O leitor moderno entra em
estado de solidão no momento da leitura. O contato com o romance traz
para ele a melancolia, que às vezes, vem disfarçada de humor e ironia. Desse
modo, o romance funciona como um espelho do leitor que se
vê imerso em sua subjetividade, que, por sua vez, é um dos grandes temas da filosofia.
Tradicionalmente, o sujeito moderno é construído por três aspectos: a
consciência, a identidade e a autodeterminação. No livro Esferas I de Peter Sloterdijk, busca-se
compreender como o ser humano se torna um ser apto a criar relações por meio de
uma arqueologia da intimidade na formação da subjetividade. No
primeiro livro da trilogia Esferas, depreende-se que o homem, ao
nascer, se auto constitui como um cumpridor de promessas que ele põe para
ele próprio, no intuito de dar sentido a sua existência para
criar um forte vínculo com o mundo. Desse modo, Sloterdijk diz que o homem
é um animal mal nascido, pois ele não nasce pronto para lidar com o mundo como
os outros animais. Para sobreviver no mundo, ele precisa criar seu próprio mundo
por meio da colocação de promessas para agir, isto é, o homem tem a
necessidade de tornar-se sujeito, colocando-se em exercício para cumprir as
promessas que ele coloca para si próprio.
[...] este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram mais do
ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se
esqueceu quase de todo exercício da caça, e até da administração dos seus bens;
e a tanta chegou a sua curiosidade e desatino a esse ponto, que vendeu muitos
trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalaria pra ler, com o
que juntou em casa quantos pôde ganhar daquele gênero. [...] (capítulo I)
Neste
primeiro momento, percebemos que Dom Quixote recebeu a influência de
personagens fictícios para construir o seu próprio mundo. O narrador conta que
o nosso fidalgo enlouqueceu - de maneira bem poética - ao incorporar
aquilo que só existia na ficção para a realidade. O elemento da loucura de D.
Quixote talvez seja a possibilidade única de enxergar a realidade; essa é a
falta de juízo que o acometeu.
Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de
claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do
muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo.
Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos,
como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas e
disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade
toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia
história mais certa no mundo. (capítulo I)
A partir desse momento, D.
Quixote é criado na narrativa (inclusive o próprio nome Dom Quixote de la
Mancha é inventado por nosso personagem). Sloterdijk diz que o sujeito é aquele
que se coloca em ação por meio do exercício. Logo após a decisão de se
tornar cavaleiro andante, D. Quixote vai atrás de aventuras para se consagrar
cavaleiro:
(...) pareceu-lhe convinhável e necessário, assim
para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro
andante, e ir-se por todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de
aventuras, e exercitar-se em tudo o que tinha lido se exercitavam os da andante
cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e
perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama (capítulo
I).
O romance, de maneira geral,
mostra o exercício de Quixote em se tornar cavaleiro andante em suas ações
cotidianas. Dom Quixote entra em milhares de confusões e aventuras criadas por
ele mesmo. Uma de suas aventuras mais emblemáticas é a dos moinhos de
vento:
[...] enquanto Sancho tece seu comentário, Quixote
começa a ouvir um som agudo e alto, parando de andar.
Quixote: Veja, Sancho! Bem no início de nossa jornada:
um gigante!
Sancho: Um gigante? Aonde, senhor?
Quixote: Ali, Sancho: com os braços enormes e abertos,
rodopiando-os no ar.
Sancho: Olhe bem, senhor: “aquilo” não são gigantes e
sim moinhos de vento. E o que o senhor pensa que são braços, na verdade são as
pás dos moinhos.
Quixote: Ainda que movam mais braços do que o gigante
Briareu, hão de me pagar!
Sancho assusta-se com a atitude de seu amo e
observa-o, de longe. Acontece a luta entre cavaleiro e gigante/ moinho,
culminando na queda de Quixote.
Sancho: Não disse senhor, que eram moinhos e não
gigantes?
Quixote: Bem se vê que você nada entende de assunto de
aventuras. São as coisas da guerra: de todas, as mais sujeitas a contínuas
mudanças. O que eu creio é que... algum feiticeiro, inimigo meu, transformou
estes gigantes em moinhos, só para me desmoralizar. Mas pouco há de valer suas
más artes contra a bondade da minha espada!
A
crença de Dom Quixote é que o move durante toda a narrativa, isto é, o que o
coloca em ação em busca da realização de suas promessas. Esse seria o protótipo
de sujeito pensado pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk por meio da colocação
de promessas para si próprio que, por sua vez, leva à prática de exercícios.
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