sábado, 20 de fevereiro de 2016

A morte com dignidade em "O filho de Saul"


O filme húngaro O filho de Saul/A Saul fia (2015) de László Nemes é um magnífico exemplo de que nenhum tema pode ser considerado esgotado quando estamos no âmbito da arte. Baseado no contexto da segunda guerra mundial, somos expostos a um grupo de judeus que são obrigados a trabalhar para o exército alemão nazista conhecido como Sonderkommandos. Os membros desse grupo são responsáveis por levar os prisioneiros judeus para a câmara de gás. Após a morte rápida de centenas de pessoas, esses trabalhadores tem pouco tempo para limpar o local onde os judeus acabaram de morrer para poder receber novos grupos e dar continuidade ao abatedouro humano. O ritmo do filme é acelerado, pois não para de chegar judeus no campo de concentração (mais do que fora previsto, aliás). O ritual da carnificina só é finalizado depois que os corpos passam pelo processo de cremação; quando suas cinzas, finalmente, são jogadas nas águas de um rio próximo ao campo de concentração.


Diferentemente de todos os outros filmes sobre o Holocausto que se preocupam em causar forte comoção por milhares de mortes no campo de concentração, este filme foca nas ações do nosso protagonista: Saul (Géza Rohrig). Tendo um perfil pálido, seco e inexpressivo, Saul trabalha feito uma máquina naquele lugar, parecendo já estar habituado com aquela situação imersa no horror. Ele está distante de qualquer tipo de emoção ligada àquele ambiente, concentrando-se apenas na eficácia de seu trabalho. No entanto, conhecemos um pouco mais de Saul quando um garoto que resiste a uma sessão na câmara de gás é atendido por um médico. Rapidamente, os médicos dão um jeito de se livrar daquele jovem judeu. É nesse momento que uma virada no filme acontece, pois Saul fica absolutamente comovido ao ver o menino dar seus últimos suspiros de vida, dando a entender que ele não só o conhecia como também tinha uma forte ligação com ele.


Descobrimos, então, que aquele menino é o filho de Saul; apesar dessa informação soar estranha aos ouvidos dos companheiros de Saul que já o conheciam de longa data. A partir dessa situação, inicia-se uma busca por um rabino que irá realizar uma oração (uma espécie de extrema unção) antes de Saul dar um enterro digno para o menino. Esta é a missão que Saul coloca para si mesmo. Obviamente tudo tem que ser feito na surdina porque o fato de um judeu ter a audácia de professar sua fé num lugar que existe justamente para matá-lo por conta da sua cultura é muito mais do que uma ironia; é uma afronta. Saul busca um rabino dentre os prisioneiros do campo de concentração para realizar esse ritual e, em seguida, enterrar o corpo de seu filho. Ele faz tudo isso para mostrar para os alemães nazistas como se enterra dignamente um ente querido segundo as tradições judaicas.

Dentre as inúmeras situações de perigo pelas quais o protagonista passa, o diretor László Nemes optou por apresentar o cotidiano do campo de concentração por meio do som. Somos expostos a todo tipo de crueldade, sofrimento e angústia apenas pelo som, pois a câmera acompanha o protagonista; algumas vezes posicionada na nuca de Saul ou bem em frente ao rosto dele. Tudo que se passa no segundo plano do filme está embaçado, por isso temos uma visão muito estreita do ambiente. Só podemos ver o que se passa no campo de visão do protagonista. Por isso, a experiência sonora nesse filme é tão importante. 

É impressionante como nós somos perturbados pelas vozes, gritos, choros e gemidos que são uma tentativa de reconstruir o horror que existia no campo de concentração numa maneira diferente de tudo que já vi. Além disso, a língua falada também é outro aspecto que merece destaque no filme, já que os homens começam a construir relações entre si por reconhecerem os dialetos uns dos outros. Também vale a pena ressaltar que este é um filme que reúne vários idiomas da Europa Central como o húngaro, o alemão, o polonês, etc, o que faz os comentários linguísticos presentes nos diálogos serem um forte elemento de identidade entre os personagens.

Neste filme, somos expostos de maneira visceral ao cotidiano de um homem que se agarra a sua crença para resistir ao horror que está a sua volta. Este é o último elemento de dignidade de um homem completamente humilhado, reduzido a nada, que foi forçado a contribuir com o holocausto. Saul tem fé na sua religião, na sua cultura e é movido por ela na tentativa de dar um enterro digno a seu filho, apesar de ter sua existência destruída justamente por essa crença. O final do filme ganha um toque místico de alta sensibilidade pelo fato desse aspecto ser crucial em sua narrativa. Afinal de contas, foi esse gesto de amor ao outro que fez o nosso personagem não se tornar um autômato. Sem dúvidas, essa é uma bela mensagem para um acontecimento histórico que não nos traz esperança. O cinema minimalista europeu ganha mais uma joia para sua coleção com O filho de Saul.

4 comentários:

  1. Arendt, em seu livro sobre esse assunto, conta uma frase do Eichmann em que ele diz que o ruim não foram eles terem feito o que fizeram (que, para eles, não foi ruim), mas terem visto o que estavam fazendo. O olhar os aproximava do que estavam fazendo. O ideal seria nublá-lo, como Saul. Outra forma de distanciar-se do que faziam eram não falarem sobre o que estavam fazendo: nos diversos comunicados e ordens por escrito jamais se falava em "assassinato", "extermínio" ou coisas assim. Usava-se palavras que não tinham a ver com as ações. Ouvia-se os gritos de desespero, via-se alguém derretendo no gás, mas aquilo era como um móvel sendo arrastado no andar de cima, ou seja, algo que não era com eles, não era tão ruim assim e era necessário.

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    1. Incrível, Thiago. Mas acredito que essa distância teria que ser tomada também do que se ouvia naquele lugar. Acho que fiquei mais perturbada ouvindo o sofrimento daquelas pessoas do que vendo. Talvez isso explique por que os nazistas fizeram dos judeus os seus trabalhadores no momento de executar as mortes. Eles não queriam se sentir culpados.

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    2. E queriam também completar a humilhação deles. O quão bons, superiores, eles seriam se se sujassem? O quão bons, dignos, seriam os judeus se se matassem?

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    3. Sim. Isso foi bastante cruel. Dá pra ver sinais dessa humilhação nos membros do Sonderkommandos, inclusive naqueles que eram rabinos.

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